MEMÓRIAS
Susumu Yamaguchi
Cronista e
Andarilho
E-mail: sussayam@gmail.com
VIDA
E MORTE PEREGRINA
Rumo
a Ouro Fino, poeira era o que não me faltava ao deixar Andradas e seguir pela
estrada de terra. Alguns carros reduziam bem a velocidade ao me avistarem, mas
invariavelmente aqueles com vidros escuros não o faziam, talvez porque seus
motoristas vissem que eu não os podia ver. Naquele espesso pó, rastros de
pedestres e de ciclistas também perdiam sua identidade em breve tempo.
Embora
uma grande placa se refira a certo Festival
Enogastronômico, a grande produção da região deve ser mesmo o café a se
julgar pelas enormes plantações que ocupam quase toda a área visível, até as
mais improváveis encostas de serras. Pelo que ouço falar desde que cheguei a
Joanópolis, lá devia ser assim antes; hoje, a pastagem ocupa a área que
pertencia aos cafezais e vem sendo gradativamente substituída por eucaliptais.
Como
será a visão de um peregrino do futuro ao subir lentamente a Serra dos Limas e
olhar para trás, como faço neste momento? Imagino que aquele um poderia ser o
Benê, um amigo habituado a fazer longas caminhadas diárias com um pesado
bornal. Ele traz notícias de muitos cantos do grande mundo para pessoas da
pequena cidade, que sempre as recebem com renovadas alegrias ou insólita
tristeza, mas nunca com indiferença.
E
imagino que ele poderia correr o olhar pelo amplo vale e lembrar-se mais uma
vez de nosso amigo Moisés, com quem caminhava mais longamente em seus momentos
de folga do trabalho. Tomavam o ônibus por meia hora até Piracaia e voltavam
andando por mais de seis horas; e, entre outros percursos, subiam a Serra do
Lopo e desciam para Extrema, almoçavam em Minas pesadamente à beira da rodovia
Fernão Dias e voltavam pela estrada Entre Serras e Águas, percorrendo
mais que uma maratona.
Caminharam
muito, eles. Mas este Caminho da Fé não fizeram juntos, e nem o farão. E nem
eu, com Moisés pelo menos. Agora sigo por sobre as pegadas que ele deixou neste
trecho, guardadas debaixo de poeiras e lamas de muitas estações. E oxalá Benê
passe por sobre os nossos passos, um dia qualquer em que todo o cenário aqui do
alto poderá estar diferente, mas que o espírito que move nossos passos nessa
serra, e em todo o caminho, seja o mesmo.
Margareth – margot.joaninha@hotmail.com
No
alto da Serra dos Limas, poucas casas, igreja, orelhão e bancos onde Edson e
Maurício descansam e me aguardam. Um garoto louro espera em um banco a van para
o último dia de aula, que está atrasada e a mãe acha que terá de levá-lo até
Andradas. A outra van não o levará, passa devagar e vai embora. Nas férias ele
ajudará na colheita do café, que está atrasada neste ano. Preparamo-nos para
partir. A mãe chama-o para a porta de casa. Saímos da pracinha e começamos a
andar. O menino parece triste. Olho para trás. O silêncio do bairro vazio
também parece triste. Volto-me e sigo, devagar. Para leste, sempre.
Mais
adiante, dona Natalina diz que Edgar passou em sua pousada na tarde do dia
anterior e, como se sentia bem, esticou até Barra, sete quilômetros à frente.
Ela mostra os cômodos que fez para acolher melhor os peregrinos. Quando são
muitos, ela chama a filha e a nora para ajudar na alimentação. Habitualmente
elas ficam no cafezal, mas ela mesma tem de ficar em casa para receber
telefonemas e peregrinos que passam sem regularidade. Diz que tem vontade
também de ir a Aparecida a pé, já até falou com uma amiga, mas tem de ter pouso
no máximo com vinte e cinco quilômetros. O seu amistoso cachorro atende pelo
nome de Saddam Hussein.
A
visão que se tem de Barra do alto da serra é impressionante, ainda mais se
sentimos dores nos joelhos. Assim como eu, Maurício começou a sentir o joelho
direito um dia após a descida para Águas da Prata. Edson nada sentiu, e como
não os vejo na estrada que desce para lá imagino que já tenham chegado. Agora é
minha vez de descer até o pequeno bairro rural que pertence a Andradas,
Jacutinga e Ouro Fino, e por isso também conhecida por Três Barras. E quem
primeiro me saúda na pousada é uma alegre cachorrinha chamada Chiara.
Enquanto
Edson e Maurício percorrem os três municípios da vila procurando mortadela e
tubaína gelada, converso com Joelma e seu filho Kauê na pousada, onde moram
também o marido João e o caçula Caio. Atendem peregrinos desde o início do
Caminho da Fé, em fevereiro de 2003, primeiramente apenas com refeições no bar
e alojamentos no salão paroquial. Construíram a pousada depois, e também a
pequena gruta de Nossa Senhora Aparecida no quintal.
Vejo
pelo livro de peregrinos que quase cinco mil pessoas já passaram por aqui,
muitas apenas para carimbar a credencial, sendo cerca de setenta apenas neste
mês. Folheio as páginas e encontro a assinatura de Moisés Eli Araújo, peregrino
nº 1.804, em 13 de julho de 2005, há quase exatos 3 anos. Digo a ela que ele
morreu em dezembro último, em acidente quando pedalava em Joanópolis.
De
certa maneira, desde Tambaú vínhamos seguindo seus passos por todos os lugares
que ele passou com Edson naquele ano, como ocorreu na primeira pousada em que o
caminho adentra na região de montanhas, logo após Vargem Grande do Sul, onde
também localizamos o seu nome. Ao saber do acontecido com Moisés, a hospedeira
Cidinha Navas imediatamente escreveu ao lado: “Morreu e foi para o Céu”.
Joelma
mostra uma fotografia de um casal de peregrinos em frente ao Santuário Nacional
de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Vilma e Léo haviam feito o Caminho da
Fé em junho de 2007, em quatorze dias. Desde novembro ele estava só, após um
convívio de trinta e cinco anos. Por ela, ele peregrinou novamente em junho de
2008 e deixou ao longo do caminho uma tocante homenagem à sua memória, para os
que a acolheram e também para os que não a conheceram.
Pelo
pequeno povoado de São Pedro da Barra, que conta com não mais de duas a três
centenas de almas, a travessia da vida prossegue incessantemente. A morte,
também peregrina, às vezes demora mais de ano para passar.
Como
citar:
YAMAGUCHI, S. Vida e morte peregrina. Revista Eletrônica Bragantina On Line. Joanópolis, n.60, p.-, out.
2016.